Numa entrevista EXCLUSIVA, realizada em parceria pela revista Canalha e o Universo HQ, um dos maiores roteiristas do quadrinho europeu fala do mercado espanhol, de sua carreira, seus personagens e, para tristeza dos leitores, confirma que Torpedo acabou
Nascido na França, mas radicado na Espanha há muito tempo, Enrique Sanchez Abuli é, seguramente, o roteirista de quadrinhos que mais criou personagens de mau-caráter nas últimas décadas. Por isso mesmo, é o entrevistado da segunda edição da revista Canalha, no suplemento Páginas Negras, num trabalho conjunto de Wander Antunes (um dos editores do título) e Sidney Gusman (editor-chefe do Universo HQ).
Para os fãs de Torpedo, o seu mais famoso personagem, Abuli deu uma péssima notícia: ele está morto! E engana-se quem acha que ele foi pego pela polícia de Nova York! Nada disso! A assassina foi uma música, num disco espanhol!
Conforme apurou Gabriel Mattos, em reportagem especial para a Canalha,
a história começou em 1999, quando dois fãs de Torpedo, o músico
Loquillo e o artista gráfico (quadrinhista, letrista e diretor de cinema
e vídeo) Oscar Aibar, decidiram dedicar uma canção ao gângster
ítalo-americano, cujo nome verdadeiro é Luca Torelli.
Música feita, procuraram Jordi Bernet
(cujo traço imortalizou o personagem, após a saída do americano Alex
Toth, autor das primeiras histórias) para ilustrar o encarte do CD,
chamado Nueve Tragos, da produtoraZanfonía. E é a partir daí as informações se confundem.
O fato é que tanto no texto do encarte
como nas diversas atividades de divulgação do disco, Loquillo se referia
a Torpedo como “criação do meu amigo Bernet”. E foi assim que Abuli
soube da canção, considerando que, de uma hora para a outra seu nome,
sua obra e sua pessoa simplesmente deixaram de existir.
Depois de não conseguir explicações
convincentes com os autores do disco, Abuli confirmou que abriu processo
contra Bernet, Loquillo, Oscar Aibar e a produtora Zanfonía, pedindo a apreensão de Nueve Tragos.
Enquanto a justiça espanhola não se pronuncia, Abuli declarou, categórico: Torpedo acabou! Uma
lástima, pois os leitores, com certeza, serão os maiores prejudicados,
ficando privados das suas excelentes histórias com seu (ex) parceiro
Bernet. Só nos resta lamentar!
Esse talentoso escritor não poupa frases
fortes ou opiniões polêmicas. Ele diz o que pensa, mesmo que isso seja
tão forte quanto um direto no queixo! Seus personagens são sempre durões
e cafajestes. mas com uma marca registrada: a excelente qualidade de
suas histórias.
Mas, como diria Torpedo: chega de conversa! Portanto,
cuspa no chão, ponha o cigarro no canto da boca, pegue uma boa cerveja e
curta a versão integral da entrevista com Sanchez Abuli, que você só
confere aqui, no Universo HQ.
Universo HQ: Qual sua idade? Qual seu primeiro trabalho com quadrinhos? Por que resolveu trabalhar nessa área?
Sanchez Abuli: Faz muito tempo
que minha idade oscila entre 40 e 50 anos. Meu primeiro trabalho com
quadrinhos foi em um “caderninho” chamado Hazañas Bélicas. Eu tinha 16
anos; era a pré-história dos quadrinhos. Decidi me dedicar a escrever
porque meu pai ganhava a vida fazendo isso.
UHQ: O senhor é filho de um
romancista, poeta e roteirista de quadrinhos. Poderia nos falar da obra
de seu pai? Não a conhecemos no Brasil…
Abuli: Efetivamente, meu pai
era novelista, poeta, e roteirista de quadrinhos, entre outras coisas.
Escreveu dezenas “novelitas” (livros de bolso), roteiros, poesias e
muitas coisas mais. Ele não usava o seu nome, Enrique Sánchez Pascual,
somente pseudônimos: E. L. Retamosa (para o Velho Oeste), Alex Simmons
(histórias de guerra), Law Space (contos futuristas). Tinha muitíssimos
pseudônimos, inclusive, alemães. Meu pai escreveu muitos livros sobre a
Segunda Guerra Mundial, sobre o que ele era um especialista. Acredito
que suas novelas foram vendidas em toda América do Sul.
UHQ: Torpedo foi inicialmente
desenvolvido graficamente pelo americano Alex Toth, que abandonou a
série por achá-la muito violenta e amoral. Como foi o fim dessa
parceria? Vocês ainda mantêm contato?
Abuli: Conheci Alex Toth
pessoalmente quando veio a Barcelona e já havia desenhado os dois
primeiros capítulos de Torpedo. Pareceu-me uma pessoa excelente, mas não
podia fazer Torpedo da forma que eu o via, duro, desumano. Ele queria
fazer um gângster bonzinho. Mas como “gângster” e “bonzinho” não
combinam, disse a ele que assim não poderia ser. Ele então deixou a
série. Não mantemos contato, nem faz falta.
UHQ: Seu trabalho já foi censurado?
Abuli: Me censuraram várias
vezes. Atualmente, o editor francês de Torpedo, Glénat, se nega a
publicar o último álbum de Torpedo, “El día de la mala baba”, porque
nele há um homossexual.
UHQ: É verdade que há um desenho
animado com o Torpedo? O resultado lhe pareceu a altura do trabalho
desenvolvido nos quadrinhos?
Abuli: Sim, foi feito um
vídeo, em desenho animado, do Torpedo. Mas apenas um, porque também o
consideraram muito forte e o censuraram. O vídeo até que não ficou ruim,
mas não me parece à altura dos quadrinhos.
UHQ: Caso fosse produzido um filme do Torpedo, qual ator o senhor gostaria de ver interpretando seu personagem?
Abuli: Sempre disse que o
melhor ator para representar Torpedo seria Clint Eastwood, que tem a
altura, a cara o estilo de Torpedo. Talvez ele seja um pouco maior, mas
com uma boa maquiagem…
UHQ: As histórias de Torpedo se
passam na década de 30. O senhor faz pesquisas para tornar os seus
trabalhos o mais próximo da realidade da época?
Abuli: Sei alguma coisa dos
anos 30, por exemplo, que eles foram entre os 20 e os 40. Eu vi filmes e
li livros sobre a época. No entanto, em Torpedo o rigor histórico me
parece menos importante que a temática.
UHQ: Quais suas fontes de referência na criação de seus personagens?
Abuli: Minha referência na hora de criar personagens é imaginá-los, mas quando faço isso, sempre os vejo melhores do que são.
UHQ: Em suas histórias, especialmente
em Torpedo, as mulheres ocupam um papel quase sempre submisso. Qual a
reação do público feminino aos seus trabalhos?
Abuli: Torpedo não interessa
para o público feminino. Ele é um tipo durão, machista, “sexista”. Mesmo
assim, algumas mulheres consideram Torpedo divertido e dizem rir muito
com ele.
UHQ: Torpedo é uma série de quase 20
anos. Como é desenvolver um projeto por tanto tempo? Jordi Bernet
costuma contribuir com idéias para roteiro, ele opinava sobre o texto ou
prefere se dedicar ao desenho?
Abuli: Sim, Torpedo estava
para completar 20 anos… Jordi Bernet se dedicava a desenhá-los; e eu a
escrevê-lo! Cada um se concentrava em seu campo.
UHQ: Os quadrinhos atravessam um
momento muito difícil no Brasil. Com que intensidade a crise mundial no
setor chegou até a Espanha?
Abuli: Na Espanha os quadrinhos também passam por uma grande crise. Por isso trabalho preferencialmente para a França.
UHQ: A que o senhor atribui a perda
de leitores que os quadrinhos vêm sofrendo? Acha que uma maior
diversidade temática seria um caminho para se conquistar novos leitores?
Abuli: Não acredito que a
diversidade temática seja a solução para a crise. O mangá, que traz esta
diversidade temática, também está em crise agora. Receio que os
quadrinhos tenham um desafio penoso pela frente: o mundo audiovisual,
que atrai mais jovens, e o cinema, que atrai mais adultos.
UHQ: Os autores brasileiros, mesmo
nossos maiores expoentes não têm como se dedicar exclusivamente às
histórias em quadrinhos e atuam em jornais, publicidade, televisão… O
senhor se dedica exclusivamente aos quadrinhos?
Abuli: Faço traduções de histórias em quadrinhos e de revistas, para várias editoras. É muito difícil viver dos quadrinhos na Espanha.
UHQ: Revistas como Cimoc e Cairo
deixaram de circular. Há novas revistas com propostas editoriais
parecidas com as delas na Espanha?
Abuli: Não há revistas, com exceção de El Jueves, que pratica um humor atual e El Vibora. E uma ou outra revista pornô.
UHQ: De que forma a existência de
revistas como El Víbora, Cimoc e Cairo contribuiu para o surgimento de
grandes nomes dos quadrinhos espanhóis?
Abuli: Revistas como 1984,
Creepy, Comix International, Cimoc, Cairo… eram como terra para semear
quadrinhos. Agora, esse espaço não existe ou viu-se reduzido à sua
mínima expressão.
UHQ: O senhor não sente falta de uma certa ambição intelectual em grande parte dos autores de quadrinhos?
Abuli: Não saberia dizer se
existe uma falta de ambição intelectual nos quadrinhos de hoje em dia.
Até porque não gosto de quadrinhos intelectuais. Aprecio quadrinhos
inteligentes, mas não os intelectualizados. Devo reforçar que falta
interesse por parte de um público que se sente mais atraído por outras
manifestações artísticas, como já disse: videogames, cinema, televisão…
UHQ: Quais seus autores e obras preferidos? Na cena espanhola e mundial que novos autores têm chamado sua atenção?
Abuli: Não vou citar nomes de
meus autores favoritos, porque não quero que ninguém se aborreça. Eu
gosto de histórias bem construídas, bem contadas, com bons diálogos ou
com bons silêncios. E, se possível, com um bom final. Naturalmente,
também peço que elas sejam bem desenhadas. Autores do mundo inteiro
fazem histórias assim, ainda que sejam sempre os mesmos.
UHQ: Atualmente, o senhor lê quadrinhos? Quais?
Abuli: Leio os quadrinhos que
eu traduzo, que são, em sua maioria, franceses e americanos. E um ou
outro mangá, mas estes são poucos. Geralmente, ganho edições de
presente, mas também sou capaz de comprar alguma, de vez em quando.
UHQ: O senhor conhece os quadrinhos brasileiros? O que o senhor sabe do Brasil?
Abuli: Não conheço nada dos
quadrinhos brasileiros, além da revista Canalha. Do Brasil, sei que
possui uma floresta fantástica e umas mulatas ainda mais fantásticas. A
imagem que temos do Brasil é a de uma praia tropical, onde uma garota
nua e sensual mexe as cadeiras ao ritmo de um samba, enquanto um homem,
em segundo plano, a come com os olhos. E, ao fundo, o sol se põe
avermelhado.
UHQ: Em que países seus trabalhos foram publicados?
Abuli: Creio que Torpedo foi publicado em uns 14 países. Mas poderiam ser 15, que eu não me importaria.
UHQ: Bernet, Darko, Pastoras, Oswal,
Rossi… Como é trabalhar com tantos parceiros? O processo criativo é o
mesmo com todos? É muito diferente trabalhar com um autor espanhol, como
o Bernet, e com um iugoslavo, como o Darko?
Abuli: Gosto de trabalhar com
mais de um desenhista. Meu sistema costuma ser assim: escrevo o script e
o envio ao desenhista. Para Darko traduzo para o inglês; e para Rossi
escrevo em francês.
UHQ: De todas as suas “crias”, qual o personagem que mais gosta?
Abuli: Certamente minha
criação favorita é Torpedo, apesar de também ter carinho pelo
Missionário, com Pastoras, e por Patapalo e seu bando de piratas, com
Rossi.
UHQ: Para os seus personagens, o senhor produziu tanto histórias curtas, quanto longas. Qual sua preferência?
Abuli: Eu gosto das histórias longas e curtas, mas a maioria dos meus leitores parece preferir as curtas.
UHQ: O que o senhor pensa dos quadrinhos de super-heróis? Trabalharia com esse gênero?
Abuli: Não creio que venha a
trabalhar com super-heróis, porque não consigo acreditar neles. Para
mim, basta – e sobra – os homens de carne e osso.
UHQ: E sobre os mangás, qual sua opinião?
Abuli: Eu traduzi alguns
mangás interessantes, como, por exemplo, Akira, que me pareceu bom. Em
linhas gerais, esse gênero não me interessa muito, mas se um dia ler uma
história que me fascine, sou capaz de mudar de opinião.
UHQ: O que o senhor acha dos
quadrinhos que são publicados na internet? Acha possível, algum dia, os
quadrinhos se desvincularem do papel?
Abuli: Para mim, histórias em
quadrinho é papel. Na internet podem ficar bonitos, porém, não é mesma
coisa. Eu preciso tocar o papel, senti-lo. Além disso, gosto muito do
seu aroma, que pode até me fazer recordar uma mulher e seus beijos.
UHQ: Quais seus trabalhos mais recentes?
Abuli: Meus trabalhos mais
recentes: histórias eróticas para a Playboy espanhola, com Félix Veja,
desenhista chileno residente em Barcelona; o segundo álbum de Patapalo
com Rossi; histórias futuristas de duas garotas violentas em Saturno,
com Cromwell, autor francês. E o último: Moebius me pediu que lhe
escreva histórias curtas de Blueberry. Serei capaz? Mmmm…
UHQ: Como é Sanchez Abuli? O autor de narrativas tão cheias de canalhas, tão violentas, tão cínicas…
Abuli: Apesar de meus
personagens violentos, canalhas e cínicos, sou um homem basicamente
pacífico. Uma coisa é o que escrevo e outra, muito diferente, o que
vivo.
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